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sábado, 22 de dezembro de 2007

"A Chegada"


Max Lucado

O barulho e o movimento começaram mais cedo do que de costume na cidade. Quando a noite deu lugar à madrugada, já havia gente nas ruas. Os vendedores se colocavam nas esquinas das avenidas mais trafegadas. Os lojistas abriam as portas de suas lojas. As crianças acordavam com o latido alvoroçado dos cães vadios e das queixas dos jumentos que puxavam as carroças.

O dono da hospedaria levantara mais cedo do que a maioria dos habitantes da cidade. Afinal de contas, a hospedaria estava cheia, com todas as camas ocupadas. Todo tapete ou esteira disponível tinha sido usado. Logo todos os fregueses começariam a levantar e haveria muito trabalho a fazer.

Nossa imaginação se inflama pensando na conversa do estalajadeiro com sua família à mesa do café. Alguém mencionou a chegada do casal jovem na noite anterior? Alguém cuidou deles? Alguém comentou a gravidez da moça no jumento? Talvez. Talvez alguém falou no assunto. Mas, na melhor das hipóteses, ele foi levantado e não discutido. Não havia tanta novidade assim sobre eles. Tratava-se possivelmente de uma das várias famílias que não pudera ser recebida naquela noite.

Além disso, quem tinha tempo para falar sobre eles quando havia tanta excitação no ar? César Augusto fez um favor à economia de Belém quando decretou que houvesse um recenseamento. Quem podia lembrar-se de uma época em que se fizesse tanto comércio na cidade?

Não, é duvidoso que alguém tivesse mencionado a chegada do casal ou atentasse na condição da moça. Todos estavam ocupados demais. O dia já raiara. O pão diário precisava ser feito. As tarefas da manhã tinham de ser feitas. Havia tanto para fazer que ninguém tinha tempo para ficar imaginando que o impossível acontecera.

Deus entrara no mundo como um bebê.

Mas se alguém entrasse no curral de ovelhas na periferia de Belém naquela manhã, que cena peculiar contemplaria.

O estábulo cheira como todos fazem. O mau cheiro provocado pela urina, excremento e ovelhas paira forte no ar. O chão é duro, o feno escasso. Teias de aranha pendem do teto e um ratinho atravessa correndo o chão sujo.

Não podia haver um lugar menos adequado a um nascimento.

De um lado se encontra um grupo de pastores. Eles estão sentados silenciosamente no solo, talvez perplexos, talvez reverentes, mas sem dúvida extasiados. Sua vigília noturna fora interrompida por uma explosão de luz dos céus e uma sinfonia de anjos. Deus vai até aqueles que têm tempo para ouvi-lo -- e assim, naquela noite sem nuvens, ele fora até os simples pastores.

Junto à jovem mãe se assenta o pai cansado. Se alguém está cochilando, esse é ele. Não consegue lembrar-se da última vez em que pôde sentar-se. E agora que a excitação diminuiu um pouco, agora que Maria e o bebê estão confortáveis, ele se apóia na parede do estábulo e sente seus olhos se fecharem. Ele ainda não entendeu tudo. O mistério do evento o intriga. Mas não tem no momento energia para lutar com as perguntas. O importante é que a criança está bem e Maria a salvo. A medida que o sono vem, ele lembra do nome que o anjo lhe dissera para usar... Jesus. "Nós o chamaremos Jesus."

Maria está bem desperta. Como parece jovem! Sua cabeça repousa sobre o couro macio da sela de José. A dorfoi embora como por encanto. Ela olha para o rostinho da criança. Seu filho. Seu Senhor. Sua Majestade. Neste ponto da história, o ser humano que melhor compreende quem é Deus e o que ele está fazendo é uma adolescente num estábulo mal cheiroso. Ela não pode tirar os olhos dele. De alguma forma Maria sabe que está carregando Deus nos braços. Esse é então ele. Ela lembra as palavras do anjo. "O seu reinado não terá fim."

Ele parece qualquer coisa menos um rei. Seu rosto é avermelhado, lembrando uma ameixa seca. Seu choro, embora forte e saudável, continua sendo ainda o de um bebê indefeso, lancinante e agudo. Ele depende absolutamente de Maria para seu bem-estar.

Majestade em meio ao mundanismo. Santidade misturada à imundície do excremento e suor das ovelhas. A divindade entrando no mundo no chão de um estábulo, através do útero de uma adolescente e na presença de um carpinteiro.

Ela toca a face do Deus-menino. Como foi longa a sua jornada!

Esta criança superara o universo. Os trapos que o aquecem eram os mantos da eternidade. A sala dourada de seu trono fora esquecida em favor de um curral de ovelhas imundo. E os anjos adoradores foram substituídos por pastores bondosos mas perplexos.

Enquanto isso a cidade fervilha. Os mercadores não sabem que Deus visitou o seu planeta. O estalajadeiro jamais creria que enviara Deus para o frio lá fora. E o povo zombaria de quem quer que dissesse que o Messias jaz nos braços de uma jovenzinha na periferia de sua cidade. Eles estavam todos ocupados demais para sequer considerar essa possibilidade.

Os que não assistiram à chegada de Sua Majestade naquela noite, não perderam a oportunidade por causa de atos perversos ou malícia; de modo algum, eles a perderam simplesmente porque não estavam olhando.

Pouco mudou nesses últimos dois mil anos, não é?
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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

ESPIRITUALIDADE MASOQUISTA, TEOLOGIA SÁDICA

Ricardo Gondim.


Para Simone Weil quando o sofrimento atinge níveis próximos do desespero, ele se chama de “infortúnio". Para ela, o infortúnio acontece quando a dor chega, ao mesmo tempo, em três dimensões essenciais da vida: a física, a psicológica e a social.

As dores isoladas não deixam vestígios. A dor física provocada por um dente infeccionado, por exemplo, desaparece, instantaneamente, quando o dente é extraído.

A teóloga alemã, Dorothee Sölle, afirma que nem mesmo a dor puramente psíquica alcança a dimensão do infortúnio, já que “o espírito, que por natureza foge do infortúnio com a mesma imediatidade e o mesmo ímpeto irresistível com que um animal foge da morte, sempre dispõe de suficientes meios de derivação”.

Existem pessoas que sofrem o infortúnio porque estão feridas, simultaneamente, no plano físico, mental e social; estão abatidas porque, junto com a dor corporal, esvai-se também a auto-estima e junto com a baixa estima brotam sentimentos (reais ou imaginários, não importa) de “descenso social”, que solapam a esperança.

O que os religiosos chamam de inferno é o mesmo que a filosofia de Simone Weil considera como infortúnio: a soma do medo de ser proscrito da comunidade, mais o horror de ver-se como um estrangeiro em sua própria cidade, mais as seqüelas da dor física, mais a culpa sem conserto, mais a impotência diante dos processos gigantescos de opressão.

A principal característica do infortúnio é a escravidão, “o desenraizamento da vida, algo que, numa forma mais ou menos atenuada, é equiparável à morte, algo presente na alma de forma inelutável à guisa de agressão ou ameaça direta da dor corporal”.

Uma mulher espancada pelo marido e que convive num ambiente religioso e social que não permite o divórcio, sofre para além da dor; ela está escravizada ao “infortúnio”; vive um inferno. O mesmo inferno do índio tuberculoso quando tosse sangue e é segregado do restante da tribo; ou do iraquiano que depois de enterrar o filho, precisa voltar para os escombros de seu lar; ou do camponês que trabalha na lavoura da cana até a fadiga mortal.

Muito do que já se escreveu como teologia, não passa do esforço monumental de responder ou lidar com o infortúnio. Para Dorothee Sölle, as várias tentativas de responder aos horrores do sofrimento acabaram produzindo, simultaneamente, “masoquismo religioso” e “teologia sádica”.

“Masoquismo religioso” deve ser compreendido como resultado do esforço da teologia de oferecer argumentos que auxiliariam as pessoas em seus infortúnios. E um desses argumentos vem como uma chamada para que se encare a dor como uma pedagogia.

No masoquismo religioso as pessoas são ensinadas a conviverem com um Deus que abate, faz sofrer, permite agonias atrozes, mas, sempre para ensinar alguma coisa. Deus investe no crescimento dos seres humanos e um de seus métodos é fazer padecer.

Então, o objetivo de uma verdadeira espiritualidade seria a aceitação ou resignação aos planos (nem sempre revelados) de Deus para a vida. Sölle menciona em seu livro, “Sofrimento” (Editora Vozes), os argumentos de um pequeno dicionário teológico sobre a responsabilidade do homem [e da mulher] diante do sofrimento:

“Aceitar sem restrições a situação que se abate sobre ele, acolhe-la e integrá-la criativamente e transforma-la (ativo enquanto sofre e sofrendo ativamente) num momento de sua realização própria (o que ver a ser o o posto de um passivo deixar-acontecer), de modo que nele se decida por Deus... Nesse sentido o sofrimento se configura como ‘querido por Deus"’.

Para Sölle, o masoquismo religioso ensina que “o sofrimento está aí para que seja quebrado o nosso orgulho, evidenciada a nossa dependência". Assim entendido, o sofrimento teria como efeito reconduzir-nos a um Deus cuja excelsitude se manifesta na medida de nossa pequenez”.

Infelizmente tal masoquismo se tornou prevalecente na cristandade ocidental; seu propósito aparentemente nobre é convencer as pessoas de que os infortúnios incontornáveis da existência fazem parte de um plano maior, são elos ou engrenagens de um sistema que visa nosso bem eterno. “Assim sendo todo sofrimento é considerado uma provação por Deus enviada, a que devemos submeter-nos”.

Quem aprender a submeter-se passivamente diante das adversidades mais implacáveis, consegue, dentro dessa maneira de pensar, maior consagração. Como o sofrimento significa também punição, as tribulação devem ser compreendidas como castigo divino, conseqüência de pecados antigos, inclusive, do pecado original, cometido por Adão e Eva.

Tal masoquismo tenta, portanto, responder aos infortúnios quando insiste que Deus faz adoecer porque ama, e que mata quando precisa cumprir qualquer propósito. Nesse pressuposto foi possível afirmar que Deus chegou a criar homens [e mulheres] maus para usá-los em “trabalhos sujos” - citam-se o endurecimento do coração de Faraó e a doutrina da dupla predestinação, uns criados para o céu e outros para o fogo eterno.

Essa noção leva a outro extremo: o sadismo teológico. Diante das ambigüidades humanas, diante do recrudescimento constante do mal, não é difícil ensinar as pessoas a se submeterem a uma suposta “pedagogia divina”. Ora, o mal não desaparece, não dá tréguas. O caminho aparentemente mais fácil para lidar com as dores universais seria, então, aprender a confiar que, de alguma maneira, tanta dor sirva para algum propósito – mesmo desconhecido.

Mas para substanciar esse aprendizado torna-se necessário erigir uma concepção de Deus como “agente causal do sofrimento”:

“O Deus propiciador e agente causal do sofrimento converte-se em tema transfigurado da teologia, a qual incapaz de um ardor próprio, dirige o olhar para o Deus atormentador e exigente do impossível. Mal se pode duvidar de que a Reforma tenha reforçado os acentos sádicos da teologia. A experiência existencial assim como fora configurada na mística de um Deus que se posiciona ao lado dos sofredores é substituída por uma sistemática teologia relacionada com o juízo final” .

Por isso, quando confrontado com situação paradoxais como a prosperidade dos ímpios e os infortúnios dos fiéis, Calvino ofereceu uma resposta dramática: "O Senhor engorda os porcos para o abate”; referindo-se obviamente ao juízo final.

Sölle considera que na concepção calvinista do sofrimento há um esforço para preservar a sagrada majestade de Deus às custas da desvalorização da humanidade, sempre retratada de forma monstruosa. Acontece que existe uma incoerência interna no argumento. Se Deus criou todas as coisas e as predestinou para que fossem da maneira que são, ele não poderia se irar contra a perversidade, pois ela fez parte de seu planejamento eterno.

Mas para defender essa percepção, epidemias, guerras e outras angústias são aceitas como castigos que vingam a glória divina, punem os pecados e "educam" os salvos. O sofrimento é, assim, um castigo de Deus que tem propósito. Calvino afirmou: ‘Os povos que vens castigar; os homens foram golpeados por tuas varas através da doença, da prisão e da pobreza, devem ter pecado.

Uma das tarefas da teologia, entretanto, deveria ser a de esvaziar precisamente tais concepções. Deus não justifica a miséria e a injustiça que condena bilhões à degradação sub-humana; os imperialismos e colonialismos alienantes não fizeram parte do projeto criador de Deus e não são dentes das engrenagens escatológicas.

A dor humana é um acinte ao seu propósito de que todos "tenham vida com abundância"; a injustiça será sempre um horror que move Deus a conclamar os profetas a mostrarem sua indignação; as chacinas e os holocaustos são excrescências provocadas pela maldade dos corações humanos e Deus jamais planejou que fossem assim. “Há dores que ultrapassam infinitamente toda forma de culpa. É demasia para todos”.

É mister que se recupere o legado místico da espiritualidade cristã, que não prioriza um teísmo vingador e não aceita o “deus da pedagogia escondida”. Nas tradições espirituais cristãs místicas. Deus é compassivo com o sofrimento e com as contingências, muitas vezes, dolorosas e perversas da história. O clamor dos injustiçados, o sofrimento dos escravizados e as angústias dos marginalizados sobem até os seus ouvidos e provocam sua ira. O sofrimento do mundo magoa o seu coração.

Se houve alguma necessidade de sacrifício para que a maldade não passasse impune, Deus infligiu a si mesmo – “o castigo que nos traz a paz estava sobre ele”. Se o derramamento de sangue era imprescindível para que se satisfizesse a justiça, "o Senhor, tal como uma ovelha que segue para o matadouro", entregou-se pelo mundo.

Deus não é sádico. Ninguém precisa aprender a lidar com os infortúnios com masoquismo. Há esperança!

Soli Deo Gloria.
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*Retirado de www.ricardogondim.com.br

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

ENTRE A CRÍTICA E A CONVICÇÃO(*)

ALFREDO DOS SANTOS OLIVA(**)

Introdução
Paul Ricoeur, que é um cristão reformado e dos mais importantes filósofos contemporâneos, concedeu uma grande entrevista que acabou por ser publicada na forma de livro com o título de "A crítica e a convicção". O nome da obra originou-se de um trecho da entrevista em que Ricoeur é questionado acerca de como conseguia harmonizar a sua vida de pesquisador no campo da filosofia com sua fé cristã. Sua resposta foi a de que ele havia feito uma opção por viver da tensão entre a permanente crítica do pensamento, tarefa da filosofia, e a convicção, atributo da fé.

Gostaria de utilizar as duas metáforas provenientes da entrevista do filósofo francês para dar nome a esta exposição e refletir sobre um fato muito comum entre nós que optamos por transitar nas fronteiras da academia e da vivência da fé cristã. Penso que a escolha de Ricoeur tem sido uma exceção à regra. A maioria das pessoas tem escolhido viver somente uma das duas dimensões. Desejo avaliar as implicações que uma opção unilateral pode ter sobre a vida das pessoas, para, em seguida, propor uma alternativa tensa: viver entre a crítica e a convicção. Ao final de cada um dos três itens vou fazer uma avaliação das conseqüências de cada modo de relacionar ciência e fé.


1. O caminho da crítica sem convicção

Um dos debates que tem ocupado as ciências sociais e humanas na atualidade concentra-se em uma severa crítica ao iluminismo moderno. Dentre os vários aspectos desse projeto, os estudiosos contemporâneos, de forma especial, têm falado da confiança que esses professavam na autonomia e na liberdade humanas, de suas críticas veementes a toda forma de religiosidade, sobretudo se fosse institucionalizada, bem como de sua valorização excessiva da racionalidade. Mesmo muitos religiosos, sobretudo os que foram gerados dentro da tradição reformada, não estiveram imunes a esse racionalismo. Apenas se diferenciavam de seus contemporâneos seculares por não aceitarem o ateísmo. Parece-me, todavia, haver diferenças muito tênues entre um ateísmo declarado e a apologia de uma religião nos simples limites da racionalidade!

O iluminismo, que se consolidou como proposta no século XVIII, deixou de ser projeto para se tornar um paradigma societário no século XIX. De projeto de sociedade, passou a reger modos de pensar e agir no mundo ocidental contemporâneo. Essa cosmovisão tem produzido muitos frutos, alguns bons e outros ruins. Não tenho espaço para fazer esta avaliação agora.

Neste momento apenas gostaria de destacar que este caminho que incompatibiliza a vida acadêmica com a experiência e a vivência da fé tem suas raízes mais profundas no paradigma iluminista. Para essa visão de mundo a ciência está mergulhada em uma linguagem conceitual precisa e no exercício rigoroso da racionalidade cognitiva, portanto incompatível com as categorias do submundo religioso, por demais imerso em uma linguagem simbólica, cheia de metáforas e sentidos que a razão nem sempre pode apreender com muita precisão.

Minha compreensão não é a de que uma vida de fé seja incompatível com a pesquisa acadêmica, nem mesmo acho que a experiência religiosa seja vazia de racionalidade, mas entendo que, pensando assim, não estou em sintonia com a maioria dos intelectuais do mundo ocidental contemporâneo. Desde a modernidade, temos aprendido a pensar a vida religiosa a partir de expressões de caráter negativo - obscura, opressora, alienante etc. - e a pesquisa científica de forma positiva - iluminadora, libertadora, crítica etc.

Em função deste contexto em que ainda vivemos, não me espanta que muitas pessoas sérias na sua profissão acadêmica sintam-se envergonhadas de buscar ou viver a convicção que a religião gera em seus adeptos. Elas foram treinadas e estimuladas a duvidar e a criticar tudo e todos. As pessoas ligadas à academia foram estimuladas a desenvolver apenas a dimensão cognitiva de sua racionalidade. Outros aspectos ou dimensões da racionalidade, como a estética e a expressiva, têm sido menosprezados pelos cientistas. Filósofos, como o alemão J. Habermas, têm se ocupado em fazer uma interessante crítica à racionalidade ocidental, bem como ao reducionismo que tem levado muitos pesquisadores a se esquecerem da sua multidimensionalidade. Por causa desta visão reducionista de razão, a expressão de convicções, para serem dignas, deveria estar baseada em evidências empíricas que fossem racionalmente explicáveis. Deus seria um ser por demais abstrato e intuitivo para ser alvo da atenção de cientistas racionais, com poucas e felizes exceções.

Não são raras as pessoas que escolhem trilhar o caminho da crítica sem convicção. Lembro-me de um professor dos tempos de graduação em uma universidade pública que, sabedor de que eu estudava teologia e história ao mesmo tempo, uma vez disse em sala de aula que "“não sabia o que padres, freiras e seminaristas estavam querendo ao estudar história". Na mente de meu estimado professor, a busca pelo conhecimento acadêmico não se justificava para as pessoas de fé. A crítica proporcionada pela investigação científica não se compatibilizava com a convicção que a experiência de fé proporcionava. A vida acadêmica só faria sentido para quem desejasse ser livre do suposto obscurantismo proporcionado pela religião.

Este caminho tem seus problemas: pode gerar arrogância acadêmica, aridez intelectual e emocional, falta de critério para avaliar as conseqüências éticas do saber científico, intolerância para com outras formas de saber etc.

2. O caminho da convicção sem crítica

Outro debate interessante proporcionado pelas ciências humanas e sociais é o que diz respeito ao modo mais adequado para se designar as transformações pelas quais o mundo contemporâneo tem passado. Se há um certo consenso em designar o período compreendido entre os séculos XVI e XIX de modernidade, os estudiosos ainda não concordaram sobre a nomenclatura que poderia explicar as mudanças que o ocidente experimenta desde os últimos 50 ou 60 anos do século XX.

Alguns pesquisadores gostam de se referir aos tempos atuais usando a expressão pós-modernidade (B. S. Santos), outros preferem o termo modernidade tardia (A. Giddens) ou mesmo neomodernidade (S. P. Rouanet). Há concordância em apenas admitir que existem certos valores da modernidade que precisam ser analisados de forma crítica (racionalismo estreito, cientificismo, crença na autonomia do sujeito), mas há uma enorme dúvida quanto ao que se deveria colocar no lugar do projeto moderno.

Uma das alternativas ao projeto iluminista tem sido o que C. Lemert chama de pós-modernismo radical. De forma bastante simplificada, seria uma afirmação dos valores negados pela modernidade, ou seja, uma apologia radical do irracionalismo, uma veemente negação do valor da ciência e uma crença na dissolução da subjetividade. Esta perspectiva ou projeto seria responsável pela difusão de um relativismo na academia, bem como de um excesso de religiosidade e ou mistificação das imagens de mundo.

Muitas são as expressões para designar a efervescência religiosa dos dias de hoje: revanche do sagrado, retorno do sagrado, emergência de um sagrado selvagem, dessecularização etc. Também não sei ao certo como designar este mundo contemporâneo onde a religiosidade impregna todas as instâncias da vida humana, mas estou certo de que está florescendo algo muito perigoso. O excesso de mistificação da realidade tem construído um mundo carregado de símbolos vazios e escasso de reflexão e análise.

Também não é pequeno o número de pessoas que escolhe trilhar por este caminho. Lembro-me dos fundamentalismos americano e muçulmano, muito em voga no cenário mundial dos dias de hoje. Religiosos que não conseguem ler a realidade para além da roupagem sagrada e intolerante. O presidente americano se acha o messias do reino da luz que deve erradicar as obras das trevas (islamismo, terrorismo). Do outro lado, religiosos muçulmanos radicais se atiram sobre pessoas, prédios e estabelecimentos públicos, verdadeiros homens e mulheres bombas explodindo a vida alheia, por crerem que assim podem acabar com os inimigos de Alá (cultura ocidental, imperialismo).

Também este caminho tem os seus perigos: pode vir a gerar intolerância para com outros atores religiosos, negação da importância do saber científico, obscurantismo intelectual, isolamento social e afetivo etc.

3. O caminho da tensão entre a crítica e a convicção

Felizmente nem todas as pessoas acham que radicalizar os anti-valores da modernidade é a melhor forma de criticá-la. O sociólogo português B. S. Santos, por exemplo, entende que a modernidade produziu uma série de déficits, promessas não cumpridas, mas também produziu muitas coisas positivas. Não se deve jogar fora a banheira com a criança dentro. Não há nada de errado com a razão em si. Por si só o exercício da razão não é bom nem ruim. Há problemas, sim, com a concepção estreita de razão da modernidade, que não permite perceber o mundo para além de sua dimensão instrumental. O mesmo se pode dizer de sua supervalorização, que chegou ao ponto de deslegitimar todas as demais formas de conhecimento que não fossem científicas e/ou racionalistas.

Penso que o caminho da tensão proposto por Ricoeur é uma alternativa muito interessante. Entendo que nos dias de hoje precisamos de pessoas críticas, que manejam bem conceitos e categorias do campo científico. Homens e mulheres capazes de mostrar a face obscura e opressora da religião e de suas expressões radicais. Creio não haver nenhuma necessidade de se buscar refúgio na certeza cega dos fundamentalismos religiosos. Deus dotou o ser humano de racionalidade para que ele a usasse sempre.

Lembro dos crentes dos tempos do Novo Testamento, conhecidos como bereianos, que ouviam as pregações religiosas e depois julgavam o que tinham ouvido. Não temos necessidade de fazer nossas mentes se tornarem apenas receptáculos de informações simplesmente porque temos tido uma experiência religiosa que tem mudado o modo como vivemos. Mais do que nunca, precisamos de pessoas convictas do amor de Deus e que não se envergonham de sua identidade religiosa, que não se acovardam diante dos desafios críticos apresentados pela ciência.

Por outro lado, a valorização do saber racional-científico não pode levar as pessoas a abrirem mão de sua opção religiosa. A ciência despida de uma dimensão ética/religiosa tem se mostrado trágica. Não há nenhuma necessidade de se ser ateu para se poder ser um cientista excelente. O que faz a qualidade de um pesquisador é o conhecimento de seu campo de estudo: domínio de instrumental teórico-metodológico, conhecimento empírico acumulado ao longo dos anos, destreza no uso da linguagem técnica da área, reconhecimento de sua excelência por seus pares decorrente de sua seriedade etc.

Este é o caminho que gostaria de propor: viver permanentemente na tensão entre a crítica (vivência da reflexão) e a convicção (vivência da fé); a crítica como fator que não nos permite viver uma fé cega, imatura, intolerante, superficial; a fé e o compromisso com o Reino de Deus como critério que nos permite avaliar o saber acadêmico e suas implicações éticas.

Na minha forma de ver este caminho pode produzir algumas experiências desagradáveis: instabilidade intelectual e espiritual, necessidade permanente de rever valores religiosos e acadêmicos, rejeição ou marginalização tanto pelos religiosos como pelos cientistas. Mas os frutos poderão ser compensadores: utilizar categorias do mundo acadêmico como critério que pode nos imunizar contra o obscurantismo religioso, avaliar a ciência desde uma perspectiva da ética do Reino de Deus, encontrar respeitabilidade entre religiosos e cientistas, possuir preciosas ferramentas profissionais e acadêmicas a serviço de Nosso Senhor Jesus Cristo etc.


Notas
* Palestra proferida na I Semana de Esperança, promovida pela Aliança Bíblica Universitária (A.B.U.) da cidade de Londrina, no dia 24 de novembro de 2004.

** Membro da Comunidade Nova Aliança, em Londrina. Mestre em teologia pelo Seminário Teológico Batista do Norte (Recife, PE) e em sociologia pela Universidade Federal do Ceará. Doutorando em história pela Universidade Estadual Paulista, campus de Assis. Professor da FTSA.

*** Retirado da Revista Teologia Hoje v. 3, n. 2 (2004) artigo 4

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

NEM TODO SAGRADO É DIVINO



Toda experiência com o divino é sagrada, mas nem toda experiência sagrada é divina.

As experiências sagradas colocam o crente em contato com o numinoso, com o mistério, com as dimensões que transcendem os mecanismos biológicos e físicos da vida. As experiências sagradas acontecem em lugares específicos, através de objetos especiais, com rituais ou na meditação e assimilação de textos místicos. As experiências sagradas precisam de contornos religiosos definidos -- que não são, obrigatoriamente, próprios de uma igreja.

Uma torcida organizada numa arquibancada de estádio também pode proporcionar uma experiência sagrada - e que será muito parecida com a de uma religião. Arrepios, enlevos e arrebatamentos na hora do gol, ou quando a taça de campeão é erguida, possuem características religiosas. Assim, as experiências sagradas não se limitam, exclusivamente ao campo religioso. Uma tarde em Itapoã, um reencontro de amigos saudosos, bebericar café com pão-de-queijo num dia chuvoso, podem ser sagrados sem que signifiquem um encontro com Deus.

Já as experiências com o Divino não precisam de focos específicos (Deus é mistério e espírito, e não pode ser contido num foco); não se restringem a lugares (adora-se a Deus em espírito e em verdade, nunca em templo feitos por mãos humanas).

Repito, a experiência com o Divino será sagrada, mas nem sempre religiosa. Quando o Samaritano ajudou o homem que agonizava numa beira de caminho, ele encarnou, e experimentou, o amor divino numa dimensão que estava longe de ser religiosa. Também, quando no último dia, Deus separar os bodes das ovelhas, o critério não será religioso. O destino eterno das pessoas será definido por ações muito naturais como dar de comer a quem teve fome, vestir os nus e solidarizar-se com os encarcerados.

As instituições religiosas, sempre ávidas de defenderem o direito de existirem, tentam confundir as duas experiências. Afirmam, sem titubear, que seus rituais, cultos e militância são Divinos. Nem sempre!

O que as diferencia o Divino do Sagrado? As experiências religiosas, por mais arrebatadoras, por mais deslumbrantes, por mais apavorantes, não conseguem transbordar para a vida. Restritas a uma hora e a um lugar, no máximo, provocam sentimentos piedosos. Segundo Rudolf Otto, geram, simultaneamente, "medo e fascínio", mas ficam nisso.

Por outro lado, as experiências com o Divino suscitam integração, mudança de consciência, compromisso com a vida; uma práxis transformadora. Para encontrar-se com Deus, não se precisam de ritos, compromissos com o rigor dogmático ou de obediência institucional, mas de fé. (Aqui, defino fé como uma coragem existencial). Deus se revela e apostamos que seus princípios e verdades são suficientes para tenhamos vida e vida com abundância.

As igrejas se especializaram em reproduzir experiências sagradas, que podem ser estereotipadas, massificadas e desejadas como um fim em si mesmas.

As experiências com o divino, porém, são sempre únicas e irrepartíveis; elas fogem do controle sacerdotal (o Espírito sopra onde quer e como quiser) e não podem ser ideologicamente manipuladas.

As experiências sagradas se mantêm na vertical: mulheres e homens em busca do transcendente; são também intimistas: mulheres e homens emocionalmente afetados pelo misterium tremendum.


Todavia, as experiências com o Divino se expressarão na horizontalidade (a fé sem obras é morta); sempre na relação com o próximo. Eis o motivo porque Jesus enviou seus discípulos para fora dos contornos religiosos. Eles deveriam ir pelas estradas, atalhos e vielas para promoverem a vida e, para isso, a religião é desnecessária.


Soli Deo Gloria.


Retirado do site de Ricardo Gondim.

SONHOS NOVAMENTE COLORIDOS*

Despeço-me do ano. Minhas alegrias, bem como as tristezas, foram numerosas e intensas. Surpreendi-me com ressurreições e chorei mortes; dancei nos salões da felicidade e arrastei-me nos charcos do desgosto; abri os braços para acolher quem voltava e, impotente, vi as costas de quem partia.
Esse foi o ano das desilusões e dos desencantos. E eu espero não misturar esses dois sentimentos. As ilusões não passam de idealizações; os encantamentos, estados de admiração. As ilusões baseiam-se em falsidades, elas são miragens; os encantamentos nascem de apreciações da realidade. As ilusões vestem as nossas mentes de fantasias; os encantamentos veem de percepções claras da vida.
Iludi-me com a nobreza institucional; acreditei piamente que a igreja que me rodeava era "a Igreja" de Jesus – por favor, perceba os "is", minúsculo e maiúsculo. Por anos, dei-me completamente a uma versão do cristianismo que eu percebia como a única, a mais verdadeira, a melhor de todos os tempos. Iludido com essa versão, não notei os ciúmes, as maldades, as invejas, que a motivavam.
Iludi-me com o expansionismo de minha missão. Acreditei no mito moderno do progresso. Eu achava que poderia continuar crescendo numericamente e, ao mesmo tempo, manter o ambiente relacional dos tempos em que me reunia com uma porção de jovens idealistas. Cheguei a pensar que poderia abrir meu coração entre clérigos profissionais com a mesma liberdade que fazia entre os primeiros parceiros de ministério.
Iludi-me com a natureza humana. Acreditei na bondade das pessoas; principalmente, nos que se diziam cheios do Espírito Santo de Deus. Eu imaginava que alguém que transbordasse de Deus não saberia conspirar como Absalão, não conseguiria trair como Judas e seria incapaz de portar-se como um lobo voraz. Ledo engano! Os porões eclesiásticos estão entulhados de cadáveres de gente esfaqueada pelas costas. A história não omite: os corredores das catedrais comportam verdugos e facínoras sequiosos de subirem as hierarquias organizacionais.
De repente, veio a desilusão. As vendas caíram dos olhos e notei o tamanho de minhas fantasias religiosas. Acontece que uma pessoa desiludida nunca mais volta a se iludir. E nesse processo, fui obrigado a separar as desilusões dos desencantamentos. Pois, ao contrário dos desiludidos, os desencantados podem re-encantar-se novamente.
Andei desencantado com minha missão, vocação e devoção. Mas jamais perdi o que inicialmente me deslumbrou no Evangelho. Continuo absolutamente fascinado com a vida de Jesus de Nazaré. E volto a maravilhar-me cada vez que leio sobre seu caráter, sua ternura para com os desvalidos e seu perdão para os pecadores. Sua doação na cruz, sua morte exemplar e a sua ressurreição triunfante, não permitem desencantos.
Em minhas dores cheguei a cogitar que desistiria de tudo, mas não consegui. Continuo acreditando que os valores do Reino de Deus precisam vazar para todas as dimensões do viver humano, sob pena de deixar o mundo se transformar no inferno de Dante. Os valores de justiça, paz e equidade humana, como propostos por Jesus e seus apóstolos, não podem ficar escondidos, mas devem ser proclamados universalmente. Isso é tão magnífico para mim que cura meu coração desiludido, devolve viço à minha poesia melancólica e re-energiza o meu labor.
Nas coisas que me desiludi, não contemplo retorno, mas sei que os meus sonhos voltam a se colorir. Neste novo ano, responderei com novo alento: "eis aqui, envia-me a mim".
Soli Deo Gloria.
Ricardo Gondim
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*Este texto foi escrito pelo Pr. Ricardo Gondim da Igreja Assembléia de Deus Betesda. Publiquei ele pelo fato te comungar com varias idéias que ele apresenta neste texto, além de esta passando por algumas angustias semelhantes (guardando as devidas propoções).