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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ação social cristã -- realismo e espiritualidade*

Paul Freston


Durante anos, a Coreia do Sul foi tida como modelo de crescimento da igreja. Porém, em meados de 1990, as igrejas coreanas pararam de crescer e até encolheram, pelo menos como porcentagem da população. Hoje, se quisermos um exemplo de igreja que cresce na Coreia do Sul, devemos olhar para a Igreja Católica. E essa situação provocou reflexões: por que as igrejas evangélicas cresceram tanto entre os anos 60 e 80 e depois estagnaram? E por que, por outro lado, a Igreja Católica vem se expandindo? Uma das razões aventadas é a relativa falta de preocupação social genuína no meio evangélico coreano. As megaigrejas ficaram conhecidas por muitas coisas, mas não pela preocupação social. A construção de impérios eclesiásticos lhes parecia mais importante do que a seriedade no trato das questões sociais. Espero que não sigamos o mesmo caminho.

No Brasil, a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS -- www.renas.org.br) é uma das entidades evangélicas mais significativas da atualidade, tanto para a igreja quanto para a sociedade. Organizações como esta são vitais para a igreja, para manter a atratividade evangélica, para alongar a curva de crescimento numérico e, acima de tudo, para o “crescimento integral” da comunidade cristã (pensando a igreja como, na famosa frase de Bonhoeffer, um clube que existe principalmente para os que não são sócios).

Entretanto, essas entidades são importantes também para a sociedade brasileira, apesar dos avanços inegáveis que têm havido. Porque tenho dividido meu tempo entre o Brasil e o Canadá, tenho podido olhar o país de dentro e de fora. Por menos que percebamos isso dentro do país, por mais que o ceticismo sobre o futuro continue, a realidade é que no exterior o Brasil não é visto como era há vinte anos. Porém não quer dizer que uma entidade como a Renas seja menos importante. Ainda há (e haverá por muitos anos) graves necessidades sociais e, mesmo nos países mais avançados, elas não deixam de existir. O aspecto estritamente material das necessidades pode diminuir, mas os aspectos não-materiais continuam existindo. E por mais que os governos se esforcem, não conseguem atender muito bem às dimensões não-materiais das necessidades sociais. Além disso, tem havido uma retração no papel social do Estado na maioria dos países avançados.

Há, no entanto, o perigo da frustração com a igreja evangélica “latu sensu”. Por mais que a RENAS cresça (e tem crescido), representa uma pequena porcentagem dos evangélicos. E essa frustração pode levar a um sentimento de superioridade. Podemos pensar que somos vanguarda, que somos os mais esclarecidos e os mais atuantes. E isso é perigoso. Para não deixarmos que esse perigo mine a base do nosso próprio trabalho, precisamos dos seguintes elementos: “realismo teológico, realismo sociológico” e algo que chamo de “humildade amorosa”.

O “realismo teológico” é a variedade de dons que Deus dá à igreja. A carta constitucional da igreja é a maneira como Deus distribui os dons do Espírito Santo. Isso deveria ser o princípio estruturante da comunidade cristã, conforme percebemos quando olhamos as duas principais listas de dons do Espírito Santo no Novo Testamento (Rm 12.3-8; 1Co 12.1-11). Há uma variedade de dons e essas duas listas são quase totalmente diferentes, exceto por um único dom repetido, que é a profecia. Elas parecem se referir a duas igrejas bem diferentes: a igreja de Corinto como uma igreja “carismática”, e a igreja de Roma como uma igreja “prosaica”. Além disso, o entorno de cada lista também é diferente. No texto de Romanos, enfatiza-se o exercício fiel dos dons e a humildade que deve acompanhá-lo, ou seja, a “fidelidade” e a “humildade”. Por outro lado, em 1 Coríntios enfatiza-se a “diversidade” e a “universalidade” dos dons, ou seja, nem todos têm os mesmos dons e todos recebem algum dom.

Poderíamos imaginar que Deus fizesse as coisas de forma diferente. Ele poderia ter constituído a igreja com dons para alguns e não para outros. Ou que quem tivesse certos dons fosse considerado superior a quem tivesse outros. Ou que, em vez de distribuir os dons, desse todos eles a cada um de nós. Em todos os casos, o princípio estruturante da comunidade cristã seria diferente. Porém, a realidade é que Deus criou uma comunidade cristã em que todos têm algum dom, ninguém é superior por ter um dom específico e ninguém possui todos os dons. Isso estrutura a noção de comunidade cristã e é o modelo pelo qual devemos medir e avaliar as comunidades cristãs existentes. Tal realismo teológico serve para moderarmos um pouco a crítica com relação ao fato de a RENAS não abarcar toda a igreja. Há vocações diversificadas que devem ser apreciadas e valorizadas pelos outros, mas não necessariamente imitadas por todos, pois nem todos recebem o mesmo chamado de Deus. O realismo teológico deve sempre adoçar a nossa crítica ao contexto eclesiástico maior.

O “realismo sociológico” é a ideia de que nem todo mundo é capacitado religiosamente da mesma forma. Nas palavras do sociólogo Max Weber, existem os “virtuoses” religiosos, ou seja, pessoas excepcionalmente capacitadas. (Note que a palavra é “virtuoses” e não “virtuosos”, que são pessoas cheias de virtudes, algo que todos os cristãos devem se tornar ao longo dos anos.) Os virtuoses são especialmente capacitados para certas experiências e certas habilidades religiosas (captar elementos místicos, por exemplo). E isso não tem a ver com a questão da salvação. Existem os virtuoses religiosos e a “massa” religiosa -- pessoas que não têm uma capacitação excepcional nesse campo. Por mais que a proposta evangélica seja transformar todos os membros da igreja em virtuoses (todo mundo deve ser “muito crente”, ter experiências espirituais fortes e se envolver em tudo), o fato é que isso nunca acontece. E sempre que a igreja cresce mais numericamente, isso acontece menos. É o que constatamos hoje no Brasil. A igreja evangélica virou fenômeno de massas e a distinção entre a massa evangélica e os virtuoses evangélicos ficou mais evidente. E é sociologicamente irrealista esperar que seja diferente. Podemos esperar que seja “melhor” do que hoje, mas nunca haverá 100% no patamar mais alto. Sempre haverá uma parcela considerável de pessoas que estão na comunidade cristã, mas que “vão levando”. A história mostra que isso sempre acontece.

Nesse sentido também é preciso adoçar nossa crítica. Como o processo de crescimento numérico gerou perdas em outros sentidos, houve uma perda considerável do valor da identidade evangélica na sociedade brasileira. Na medida em que a igreja cresce numericamente, podemos nos pautar cada vez menos pela média da igreja. Temos de ser cada vez mais contraculturais na própria igreja. Digo isso não para que nos desanimemos, mas para que saibamos não mergulhar no desânimo. De vez em quando, inevitavelmente, vem uma onda de depressão por causa da realidade evangélica mais ampla. Porém não devemos ceder a ela. O realismo teológico e o realismo sociológico nos ajudam a não “chutar o balde”.

Na próxima edição, abordaremos o terceiro elemento, a “humildade amorosa”.

Nota
* Palestra apresentada no 5º Encontro Nacional RENAS, em Recife, em agosto de 2010.


Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/326/acao-social-crista-realismo-e-espiritualidade

Como fazer discípulos de Cristo?

René Padilla


Se o propósito central da missão cristã é fazer discípulos, segundo a Grande Comissão que Jesus Cristo deu a seus discípulos (Mt 28.16-20), cabe a pergunta: Como fazer discípulos de Cristo? Para começar, precisamos levar em conta que um discípulo é primordialmente um aprendiz, alguém que está em processo de formação, cuja finalidade é que o aprendiz chegue a ser como seu mestre. Sob esta perspectiva, o mandamento de “fazer discípulos” é um mandamento para formar pessoas que cheguem a ser como Jesus Cristo.

Por certo, esta afirmação não coincide com um ensino que esteve presente em círculos evangélicos há alguns anos, segundo o qual a tarefa de discipular é formar discípulos à imagem e semelhança do discipulador. Não creio que esta tenha sido a intenção do mandamento. O Mestre por excelência a quem todos os cristãos somos chamados a seguir é Jesus Cristo. O apóstolo Paulo reconhece isto quando, escrevendo aos crentes na Galácia, lhes diz: “Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4.19). Isto não nega, no entanto, que só quem leva a sério seu próprio discipulado cristão está em condições de formar discípulos de Cristo. É por isso que o mesmo apóstolo exorta aos crentes em Corinto: “Sede meus imitadores, como também eu, de Cristo” (1Co 11.1). Tanto na tarefa de fazer discípulos como na de criar filhos, a pedagogia mais efetiva é a que depende muito mais do exemplo do que das palavras.

Voltemos à nossa pergunta inicial: Como fazer discípulos de Cristo? Já observamos na edição anterior que em nosso texto o verbo “matheteúsate” (“fazei discípulos”, no modo imperativo) é acompanhado por três formas verbais (gerúndios, no grego), duas das quais respondem diretamente a esta pergunta: “batizando-os” e “ensinando-os”.

O batismo é o rito de iniciação no discipulado. Este não é o momento para nos aprofundar na tradicional controvérsia entre quem pratica o batismo de crianças como sinal do pacto e quem pratica apenas o batismo de pessoas que creem, por entendê-lo como um ato consciente de identificação com Cristo. Para nosso propósito, basta destacar que na Grande Comissão se considera que o discipulado inicia com o batismo e que este é feito “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (v. 19).

Com o batismo começa todo esse processo ao qual nos referimos anteriormente: o processo de formação do aprendiz para que chegue a ser como Jesus Cristo. Se não se leva isto em conta, corre-se o risco de fazer do batismo a única coisa que importa. Não foi isto que aconteceu com a conquista ibérica de nosso continente? Os conquistadores chegaram com um profundo sentido de missão, com a convicção de terem sido enviados por Deus. A cruz chegou acompanhada pela espada, os soldados chegaram seguidos pelos frades missionários. E, para “converter” os aborígenes ao cristianismo, se esforçaram para batizar milhares e milhares deles. Batizaram, mas não fizeram discípulos. E assim nasceram os nossos países: com massas batizadas, mas não evangelizadas. A pergunta é se hoje nós, os evangélicos, não corremos o risco de fazer o mesmo, impulsionados pelo desejo de aumentar o número de membros de nossas igrejas, mas sem a devida ênfase na missão de fazer discípulos.

E permanece a pergunta: Como fazer discípulos de Cristo? A forma verbal “batizando-os” é apenas parte da resposta e é inseparável da que se segue: “ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado”.

Traduzido por Wagner Guimarães


C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral?.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/326/como-fazer-discipulos-de-cristo

Participando do mundo de Deus por meio da oração

Ricardo Barbosa de Sousa

A oração é o retrato da alma. É nossa identidade espiritual, a impressão digital do cristão. A maneira como oramos e o conteúdo de nossas orações revelam o que pensamos sobre Deus e o que pensamos sobre nós. A melhor forma de conhecer a teologia e o caráter de uma pessoa ou de uma igreja é observar sua oração.

É por isso que gosto de meditar nas orações na Bíblia. Gosto também de observar a forma como oramos. As orações do apóstolo Paulo em sua Carta aos Efésios nos ajudam a perceber sua teologia e seu caráter. Meditando nelas, percebemos que existem duas formas de orar: a primeira é quando apresentamos nosso mundo a Deus. A segunda é quando participamos do mundo dele.

Na primeira forma de oração, que é mais comum entre nós, oramos por nossa família, trabalho, saúde, projetos e outras necessidades pessoais. Deus quase sempre é invocado para atender a essas necessidades e emergências. Elas constituem o centro das orações. São orações que dizem respeito mais a nós do que a Deus.
Outra forma de orar é quando participamos do mundo de Deus. Oramos a partir daquilo que ele tem feito, das grandes realizações de sua graça em nosso favor. É o mundo de Deus, não o meu, que constitui o centro da oração.
É assim que Paulo ora. Ele começa agradecendo as bênçãos com que Deus nos tem abençoado nas regiões celestiais em Cristo. Ele é grato pelo fato de que Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis. Louva a Deus por nos ter adotado como filhos e filhas, por sua eterna bondade. Agradece pela redenção e libertação do pecado e reconhece a riqueza da graça de Jesus Cristo. É grato a Deus pela revelação de sua vontade e pela dádiva do seu Espírito, que sustenta nossa salvação.
Ele segue orando e suplicando para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo conceda à igreja espírito de sabedoria e revelação para o pleno conhecimento de Jesus Cristo. Para que Deus abra os olhos do seu povo para que compreendam a esperança da vida em Cristo, o poder da ressurreição pelo qual agora vivemos e a exaltação e glória de Cristo. Mais do que ser liberto da prisão, seu grande desejo é ver seus irmãos e irmãs tendo um conhecimento verdadeiro de Cristo e crescer em direção à sua real humanidade.
Ele coloca-se de joelhos diante do Pai e suplica para que Cristo habite nos corações do povo de Deus, transformando seu interior, para que possam, juntos, compreender a riqueza do amor de Cristo que transcende toda a compreensão humana e ser tomados de toda a plenitude de Deus. São esses os motivos de gratidão e as súplicas de Paulo.
É uma oração na qual podemos perceber a teologia e também o caráter do apóstolo. Antes de apresentar seu mundo a Deus, ele busca participar do mundo de Deus. Sua preocupação não se limita às necessidades pessoais. Não são suas prisões ou reputação que têm prioridade em suas súplicas. Sua atenção não está em sua saúde ou bem-estar. O que ele revela em sua oração é a paixão pela obra de Cristo, o desejo de ver o povo de Deus crescendo em direção a Cristo.
Podemos e devemos apresentar nosso mundo a Deus por meio da oração. Interceder pela família, trabalho, saúde e outras necessidades pessoais e comunitárias é parte de nossa resposta ao chamado de Cristo. No entanto, se permanecemos apenas conosco, atrofiamos a alma. Concebemos a oração a partir do nosso mundo e não do mundo de Deus. Das nossas necessidades e não das gloriosas riquezas de Cristo. Nossa compreensão de Deus torna-se confusa e a experiência de oração, frustrante.
A oração sempre começa com Deus e não conosco. O que Deus fez por nós em Cristo precede o que ele faz por nós em nossas necessidades diárias. Participar do mundo de Deus nos ajuda a entender a forma como Deus participa do nosso mundo. Se permanecemos com aquilo que Deus fez e segue fazendo em Cristo, crescemos na medida da estatura de Cristo.


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.


Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/326/participando-do-mundo-de-deus-por-meio-da-oracao

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Jesus Cristo, Senhor de tudo e de todos

René Padilla


A autoridade que Jesus Cristo recebeu do Pai ao ressuscitar, segundo sua própria declaração em Mateus 28.18, é uma autoridade universal: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”. Em outras palavras, sua autoridade se estende sobre a totalidade da criação e sobre todos os aspectos da vida humana. Não há nada nem ninguém que esteja fora da órbita da autoridade de Jesus Cristo. Ele tem autoridade não apenas sobre a igreja, mas também sobre o mundo. Não apenas sobre o domingo, mas também sobre o restante da semana. Não apenas sobre o que está relacionado com as práticas religiosas, mas também sobre o que concerne à família e ao trabalho, à arte e à ciência, à economia e à política.


Isto não significa, porém, que todos reconheçam essa autoridade de Cristo, mas sim que todos deveriam reconhecê-la. Com efeito, o que distingue os cristãos dos não-cristãos é o fato de que aqueles reconhecem e, portanto, confessam, a autoridade universal de Jesus Cristo e vivem à luz desse reconhecimento, enquanto estes não a reconhecem nem a confessam. Como afirma o apóstolo Paulo: “Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (Rm 10.12). Como veremos mais adiante, isto é o que torna necessária a missão da igreja, cuja essência é a proclamação de Jesus Cristo como Senhor. “Isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo (Rm 10.8b-9).


Infelizmente, com muita frequência nós cristãos nos deixamos levar pela dicotomia entre a esfera do sagrado e a esfera do secular. Fazemos separação entre a ética e a religião, entre o público e o privado, entre o mundo e a igreja. Como consequência, estamos marcados pela incoerência entre nossa confissão de Jesus Cristo como Senhor de tudo e de todos, por um lado, e nosso estilo de vida, por outro.


Esta incoerência se faz visível hoje em dia, por exemplo, na maneira como permitimos que a sociedade de consumo defina nosso estilo de vida, impondo-nos valores alheios aos do reino de Deus. A sociedade de consumo transformou o aforismo do filósofo francês Rene Descartes “cogino, ergo sum” (“penso, logo existo”) em “consumo, logo existo”. Como resultado, a maioria das pessoas na sociedade moderna, especialmente no mundo dominado pelo capitalismo, não consome para viver, mas vive para consumir. Pressupõe que, se uma pessoa quer chegar a ser “alguém” entre seus contemporâneos, deve ter capacidade para adquirir os símbolos de “status” que a sociedade de consumo oferece. E, para alcançar este objetivo, muitas pessoas estão dispostas a pagar um alto preço: a saúde, as boas relações conjugais e familiares, a satisfação fruto do exercício de uma vocação escolhida livremente.


Em contraste com o estilo de vida que reflete os valores da sociedade de consumo, o estilo de vida coerente com a confissão de Jesus Cristo como Senhor de tudo e de todos renuncia a estes valores e se compromete com a realização do propósito de Deus para a vida humana exemplificado por seu Filho. É um estilo de vida em que prevalecem os valores do reino de Deus que se resumem em “shalom”: harmonia com Deus, harmonia com o próximo, harmonia com a criação de Deus. E é nesta direção que aponta a missão integral.


Traduzido por Wagner Guimarães


• C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral? (Editora Ultimato).

Texto retirado da revista Ultimato, Edição 324, Maio - Junho 2010, acessado em 08 de julho de 2010.

Espiritualidade cristã e vida intelectual: alguns modelos históricos

Paul Freston


Nos últimos anos, muito se tem falado nas igrejas brasileiras da necessidade de viver a vida cristã fora do contexto eclesiástico. A falta de ensino e de modelos de vida cristã prática nos mais diversos ramos profissionais tem contribuído para a deterioração da imagem evangélica na sociedade. Em parte por causa disso, a necessidade de modelos se faz ainda maior para os estudantes, professores e pesquisadores ligados à vida universitária. Aqui, quero compartilhar três “achados” que têm me ajudado a refletir sobre algumas dimensões cristãs da vida intelectual.


Beda: um modelo de intelectual cristão em plena “era das trevas”

Estive recentemente no Nordeste da Inglaterra, na cidade de Durham, onde está enterrado Beda, o Venerável. Beda (673-735) foi um dos homens mais cultos de sua época em toda a Europa, apesar de morar nos limites setentrionais do “mundo civilizado” no período após a desintegração do Império Romano que conhecemos como a “era das trevas”. Beda é conhecido principalmente por sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”, obra pela qual chegou a ser chamado “pai da historiografia inglesa”. Porém ele também escreveu muitos comentários e homilias sobre textos bíblicos. Suas “Homilias sobre os Evangelhos” tiveram uma influência imensa durante muitos séculos.


O interessante em Beda não é só a combinação de interesses acadêmicos que atravessava a divisória entre o que hoje chamaríamos o “secular” e o “religioso” (história e exegese bíblica), mas também os valores que ele expressava em sua vida intelectual. Numa introdução moderna a sua “História Eclesiástica”, lemos que ele “combinava a paixão evangelística dos missionários celtas e a devoção disciplinada dos monges beneditinos”. Contudo, à paixão evangelística e devoção disciplinada, acrescentava virtudes relacionadas especificamente com a atividade intelectual. Nas suas obras históricas, “nunca distorcia as ações das pessoas cujas convicções ele não compartilhava”; um excelente ideal não só para todos que trabalham nas ciências humanas, mas também para todos os cristãos que se envolvem em polêmicas inter- ou intrarreligiosas! Mais ainda, avaliando as ações dos atores históricos, Beda era “generoso em reconhecer méritos, piedoso em reverenciar a santidade, mas sábio em perceber defeitos”. Por isso, o legado que deixou era duplo: a inspiração de uma “vida santa” e o valor de uma “grande obra”.



Tomás de Aquino: oração e estudo

Tomás de Aquino foi um dos maiores intelectuais de todos os tempos, e a influência de sua obra é imensa desde os últimos séculos da Idade Média. Infelizmente, para muitos evangélicos, este italiano do século 13 é associado ao catolicismo medieval contra o qual a Reforma Protestante se insurgiu. Porém diz-se que a única de suas obras que ele próprio carregava consigo em viagens era a “Catena Áurea”. O título significa “cadeia dourada”; trata-se de um comentário bíblico (em vários volumes) sobre os quatro Evangelhos. Mas este comentário não é uma obra original de Tomás de Aquino. Todo o texto consiste de frases tiradas dos grandes autores patrísticos (pessoas como Agostinho, João Crisóstomo, Ambrósio, Hilário, Orígenes, Jerônimo, Gregório, o Grande, e outros); Tomás somente escolheu as frases e as ordenou numa sequência lógica. Onde os autores divergem entre si, ele oferece as várias interpretações alternativas. Para quem ama os Evangelhos, é uma verdadeira mina, ainda mais porque a era patrística, em alguns sentidos, guarda mais semelhanças com a nossa época do que as épocas que vieram depois.



Este grande intelectual Tomás de Aquino, que amava a Bíblia e pouco tempo antes de morrer teve uma profunda experiência mística com Cristo, também escreveu uma fascinante “Oração antes do Estudo”. Apresento aqui uma versão resumida.


Criador de todas as coisas, verdadeira fonte de luz e sabedoria:


Que um raio do teu esplendor penetre minha mente,

e tire de mim a dupla escuridão do pecado e da ignorância.


Dá-me uma compreensão clara, uma memória aguçada

e a capacidade de captar a essência das coisas de maneira correta.

Concede-me o talento de ser preciso nas minhas explicações, com esmero e graça.

Indica-me por onde começar, guia-me no caminho e ajuda-me a terminar.

Por Cristo nosso Senhor. Amém.


O apelo à iluminação divina não pretende substituir, claro, a dedicação ao estudo, mas sim reconhecer duas coisas. Primeiro, que (como diz o grande sociólogo Max Weber em seu ensaio “A Ciência como Vocação”) a inspiração científica não é garantida nem pela dedicação, nem pelo entusiasmo, mas depende “de um destino que nos está oculto, e além disso da posse de um dom”. Segundo, a doutrina cristã de que a “queda” do ser humano afetou todas as suas funções, mesmo as intelectuais. Por isso, a nossa escuridão é dupla: não só da ignorância, mas também do pecado.


A oração de Tomás reconhece também, sabiamente, a dificuldade não só de começar, mas de terminar; uma dificuldade que muitas vezes resulta do perfeccionismo. Gosto também do duplo pedido por precisão nas explicações “com esmero e graça”, outra combinação difícil!



A Oração Anglicana das Vocações

O último “achado” que quero compartilhar aqui é uma brevíssima oração tirada da Grande Litania da Igreja Anglicana. Baseia-se no reconhecimento protestante das profissões “seculares” como vocações cristãs. Diz a oração:


Inspira-nos, na variedade de nossas vocações, a fazer o trabalho que nos deste com singeleza de coração, como teus servos e para o bem comum.


Primeiro, reconhece-se a variedade de vocações legítimas no reino de Deus. E, se essas vocações são tão diversas, também o deve ser a variedade de talentos e personalidades no reino de Deus. Em seguida, roga-se pelas qualidades comuns que devem caracterizar todos os vocacionados cristãos. Consistem de um meio (singeleza de coração) e dois fins (para servir a Deus e ao bem comum). Na quase infinita variedade de vocações no reino, a busca dessas qualidades é o que nos une.



• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

Texto retirado da revista Ultimato, Edição 324, Maio - Junho 2010, acessado em 08 de julho de 2010.