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quarta-feira, 7 de julho de 2010

Jesus Cristo, Senhor de tudo e de todos

René Padilla


A autoridade que Jesus Cristo recebeu do Pai ao ressuscitar, segundo sua própria declaração em Mateus 28.18, é uma autoridade universal: “Toda a autoridade me foi dada no céu e na terra”. Em outras palavras, sua autoridade se estende sobre a totalidade da criação e sobre todos os aspectos da vida humana. Não há nada nem ninguém que esteja fora da órbita da autoridade de Jesus Cristo. Ele tem autoridade não apenas sobre a igreja, mas também sobre o mundo. Não apenas sobre o domingo, mas também sobre o restante da semana. Não apenas sobre o que está relacionado com as práticas religiosas, mas também sobre o que concerne à família e ao trabalho, à arte e à ciência, à economia e à política.


Isto não significa, porém, que todos reconheçam essa autoridade de Cristo, mas sim que todos deveriam reconhecê-la. Com efeito, o que distingue os cristãos dos não-cristãos é o fato de que aqueles reconhecem e, portanto, confessam, a autoridade universal de Jesus Cristo e vivem à luz desse reconhecimento, enquanto estes não a reconhecem nem a confessam. Como afirma o apóstolo Paulo: “Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (Rm 10.12). Como veremos mais adiante, isto é o que torna necessária a missão da igreja, cuja essência é a proclamação de Jesus Cristo como Senhor. “Isto é, a palavra da fé que pregamos. Se, com a tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo (Rm 10.8b-9).


Infelizmente, com muita frequência nós cristãos nos deixamos levar pela dicotomia entre a esfera do sagrado e a esfera do secular. Fazemos separação entre a ética e a religião, entre o público e o privado, entre o mundo e a igreja. Como consequência, estamos marcados pela incoerência entre nossa confissão de Jesus Cristo como Senhor de tudo e de todos, por um lado, e nosso estilo de vida, por outro.


Esta incoerência se faz visível hoje em dia, por exemplo, na maneira como permitimos que a sociedade de consumo defina nosso estilo de vida, impondo-nos valores alheios aos do reino de Deus. A sociedade de consumo transformou o aforismo do filósofo francês Rene Descartes “cogino, ergo sum” (“penso, logo existo”) em “consumo, logo existo”. Como resultado, a maioria das pessoas na sociedade moderna, especialmente no mundo dominado pelo capitalismo, não consome para viver, mas vive para consumir. Pressupõe que, se uma pessoa quer chegar a ser “alguém” entre seus contemporâneos, deve ter capacidade para adquirir os símbolos de “status” que a sociedade de consumo oferece. E, para alcançar este objetivo, muitas pessoas estão dispostas a pagar um alto preço: a saúde, as boas relações conjugais e familiares, a satisfação fruto do exercício de uma vocação escolhida livremente.


Em contraste com o estilo de vida que reflete os valores da sociedade de consumo, o estilo de vida coerente com a confissão de Jesus Cristo como Senhor de tudo e de todos renuncia a estes valores e se compromete com a realização do propósito de Deus para a vida humana exemplificado por seu Filho. É um estilo de vida em que prevalecem os valores do reino de Deus que se resumem em “shalom”: harmonia com Deus, harmonia com o próximo, harmonia com a criação de Deus. E é nesta direção que aponta a missão integral.


Traduzido por Wagner Guimarães


• C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral? (Editora Ultimato).

Texto retirado da revista Ultimato, Edição 324, Maio - Junho 2010, acessado em 08 de julho de 2010.

Espiritualidade cristã e vida intelectual: alguns modelos históricos

Paul Freston


Nos últimos anos, muito se tem falado nas igrejas brasileiras da necessidade de viver a vida cristã fora do contexto eclesiástico. A falta de ensino e de modelos de vida cristã prática nos mais diversos ramos profissionais tem contribuído para a deterioração da imagem evangélica na sociedade. Em parte por causa disso, a necessidade de modelos se faz ainda maior para os estudantes, professores e pesquisadores ligados à vida universitária. Aqui, quero compartilhar três “achados” que têm me ajudado a refletir sobre algumas dimensões cristãs da vida intelectual.


Beda: um modelo de intelectual cristão em plena “era das trevas”

Estive recentemente no Nordeste da Inglaterra, na cidade de Durham, onde está enterrado Beda, o Venerável. Beda (673-735) foi um dos homens mais cultos de sua época em toda a Europa, apesar de morar nos limites setentrionais do “mundo civilizado” no período após a desintegração do Império Romano que conhecemos como a “era das trevas”. Beda é conhecido principalmente por sua “História Eclesiástica do Povo Inglês”, obra pela qual chegou a ser chamado “pai da historiografia inglesa”. Porém ele também escreveu muitos comentários e homilias sobre textos bíblicos. Suas “Homilias sobre os Evangelhos” tiveram uma influência imensa durante muitos séculos.


O interessante em Beda não é só a combinação de interesses acadêmicos que atravessava a divisória entre o que hoje chamaríamos o “secular” e o “religioso” (história e exegese bíblica), mas também os valores que ele expressava em sua vida intelectual. Numa introdução moderna a sua “História Eclesiástica”, lemos que ele “combinava a paixão evangelística dos missionários celtas e a devoção disciplinada dos monges beneditinos”. Contudo, à paixão evangelística e devoção disciplinada, acrescentava virtudes relacionadas especificamente com a atividade intelectual. Nas suas obras históricas, “nunca distorcia as ações das pessoas cujas convicções ele não compartilhava”; um excelente ideal não só para todos que trabalham nas ciências humanas, mas também para todos os cristãos que se envolvem em polêmicas inter- ou intrarreligiosas! Mais ainda, avaliando as ações dos atores históricos, Beda era “generoso em reconhecer méritos, piedoso em reverenciar a santidade, mas sábio em perceber defeitos”. Por isso, o legado que deixou era duplo: a inspiração de uma “vida santa” e o valor de uma “grande obra”.



Tomás de Aquino: oração e estudo

Tomás de Aquino foi um dos maiores intelectuais de todos os tempos, e a influência de sua obra é imensa desde os últimos séculos da Idade Média. Infelizmente, para muitos evangélicos, este italiano do século 13 é associado ao catolicismo medieval contra o qual a Reforma Protestante se insurgiu. Porém diz-se que a única de suas obras que ele próprio carregava consigo em viagens era a “Catena Áurea”. O título significa “cadeia dourada”; trata-se de um comentário bíblico (em vários volumes) sobre os quatro Evangelhos. Mas este comentário não é uma obra original de Tomás de Aquino. Todo o texto consiste de frases tiradas dos grandes autores patrísticos (pessoas como Agostinho, João Crisóstomo, Ambrósio, Hilário, Orígenes, Jerônimo, Gregório, o Grande, e outros); Tomás somente escolheu as frases e as ordenou numa sequência lógica. Onde os autores divergem entre si, ele oferece as várias interpretações alternativas. Para quem ama os Evangelhos, é uma verdadeira mina, ainda mais porque a era patrística, em alguns sentidos, guarda mais semelhanças com a nossa época do que as épocas que vieram depois.



Este grande intelectual Tomás de Aquino, que amava a Bíblia e pouco tempo antes de morrer teve uma profunda experiência mística com Cristo, também escreveu uma fascinante “Oração antes do Estudo”. Apresento aqui uma versão resumida.


Criador de todas as coisas, verdadeira fonte de luz e sabedoria:


Que um raio do teu esplendor penetre minha mente,

e tire de mim a dupla escuridão do pecado e da ignorância.


Dá-me uma compreensão clara, uma memória aguçada

e a capacidade de captar a essência das coisas de maneira correta.

Concede-me o talento de ser preciso nas minhas explicações, com esmero e graça.

Indica-me por onde começar, guia-me no caminho e ajuda-me a terminar.

Por Cristo nosso Senhor. Amém.


O apelo à iluminação divina não pretende substituir, claro, a dedicação ao estudo, mas sim reconhecer duas coisas. Primeiro, que (como diz o grande sociólogo Max Weber em seu ensaio “A Ciência como Vocação”) a inspiração científica não é garantida nem pela dedicação, nem pelo entusiasmo, mas depende “de um destino que nos está oculto, e além disso da posse de um dom”. Segundo, a doutrina cristã de que a “queda” do ser humano afetou todas as suas funções, mesmo as intelectuais. Por isso, a nossa escuridão é dupla: não só da ignorância, mas também do pecado.


A oração de Tomás reconhece também, sabiamente, a dificuldade não só de começar, mas de terminar; uma dificuldade que muitas vezes resulta do perfeccionismo. Gosto também do duplo pedido por precisão nas explicações “com esmero e graça”, outra combinação difícil!



A Oração Anglicana das Vocações

O último “achado” que quero compartilhar aqui é uma brevíssima oração tirada da Grande Litania da Igreja Anglicana. Baseia-se no reconhecimento protestante das profissões “seculares” como vocações cristãs. Diz a oração:


Inspira-nos, na variedade de nossas vocações, a fazer o trabalho que nos deste com singeleza de coração, como teus servos e para o bem comum.


Primeiro, reconhece-se a variedade de vocações legítimas no reino de Deus. E, se essas vocações são tão diversas, também o deve ser a variedade de talentos e personalidades no reino de Deus. Em seguida, roga-se pelas qualidades comuns que devem caracterizar todos os vocacionados cristãos. Consistem de um meio (singeleza de coração) e dois fins (para servir a Deus e ao bem comum). Na quase infinita variedade de vocações no reino, a busca dessas qualidades é o que nos une.



• Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

Texto retirado da revista Ultimato, Edição 324, Maio - Junho 2010, acessado em 08 de julho de 2010.