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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ação social cristã -- realismo e espiritualidade*

Paul Freston


Durante anos, a Coreia do Sul foi tida como modelo de crescimento da igreja. Porém, em meados de 1990, as igrejas coreanas pararam de crescer e até encolheram, pelo menos como porcentagem da população. Hoje, se quisermos um exemplo de igreja que cresce na Coreia do Sul, devemos olhar para a Igreja Católica. E essa situação provocou reflexões: por que as igrejas evangélicas cresceram tanto entre os anos 60 e 80 e depois estagnaram? E por que, por outro lado, a Igreja Católica vem se expandindo? Uma das razões aventadas é a relativa falta de preocupação social genuína no meio evangélico coreano. As megaigrejas ficaram conhecidas por muitas coisas, mas não pela preocupação social. A construção de impérios eclesiásticos lhes parecia mais importante do que a seriedade no trato das questões sociais. Espero que não sigamos o mesmo caminho.

No Brasil, a Rede Evangélica Nacional de Ação Social (RENAS -- www.renas.org.br) é uma das entidades evangélicas mais significativas da atualidade, tanto para a igreja quanto para a sociedade. Organizações como esta são vitais para a igreja, para manter a atratividade evangélica, para alongar a curva de crescimento numérico e, acima de tudo, para o “crescimento integral” da comunidade cristã (pensando a igreja como, na famosa frase de Bonhoeffer, um clube que existe principalmente para os que não são sócios).

Entretanto, essas entidades são importantes também para a sociedade brasileira, apesar dos avanços inegáveis que têm havido. Porque tenho dividido meu tempo entre o Brasil e o Canadá, tenho podido olhar o país de dentro e de fora. Por menos que percebamos isso dentro do país, por mais que o ceticismo sobre o futuro continue, a realidade é que no exterior o Brasil não é visto como era há vinte anos. Porém não quer dizer que uma entidade como a Renas seja menos importante. Ainda há (e haverá por muitos anos) graves necessidades sociais e, mesmo nos países mais avançados, elas não deixam de existir. O aspecto estritamente material das necessidades pode diminuir, mas os aspectos não-materiais continuam existindo. E por mais que os governos se esforcem, não conseguem atender muito bem às dimensões não-materiais das necessidades sociais. Além disso, tem havido uma retração no papel social do Estado na maioria dos países avançados.

Há, no entanto, o perigo da frustração com a igreja evangélica “latu sensu”. Por mais que a RENAS cresça (e tem crescido), representa uma pequena porcentagem dos evangélicos. E essa frustração pode levar a um sentimento de superioridade. Podemos pensar que somos vanguarda, que somos os mais esclarecidos e os mais atuantes. E isso é perigoso. Para não deixarmos que esse perigo mine a base do nosso próprio trabalho, precisamos dos seguintes elementos: “realismo teológico, realismo sociológico” e algo que chamo de “humildade amorosa”.

O “realismo teológico” é a variedade de dons que Deus dá à igreja. A carta constitucional da igreja é a maneira como Deus distribui os dons do Espírito Santo. Isso deveria ser o princípio estruturante da comunidade cristã, conforme percebemos quando olhamos as duas principais listas de dons do Espírito Santo no Novo Testamento (Rm 12.3-8; 1Co 12.1-11). Há uma variedade de dons e essas duas listas são quase totalmente diferentes, exceto por um único dom repetido, que é a profecia. Elas parecem se referir a duas igrejas bem diferentes: a igreja de Corinto como uma igreja “carismática”, e a igreja de Roma como uma igreja “prosaica”. Além disso, o entorno de cada lista também é diferente. No texto de Romanos, enfatiza-se o exercício fiel dos dons e a humildade que deve acompanhá-lo, ou seja, a “fidelidade” e a “humildade”. Por outro lado, em 1 Coríntios enfatiza-se a “diversidade” e a “universalidade” dos dons, ou seja, nem todos têm os mesmos dons e todos recebem algum dom.

Poderíamos imaginar que Deus fizesse as coisas de forma diferente. Ele poderia ter constituído a igreja com dons para alguns e não para outros. Ou que quem tivesse certos dons fosse considerado superior a quem tivesse outros. Ou que, em vez de distribuir os dons, desse todos eles a cada um de nós. Em todos os casos, o princípio estruturante da comunidade cristã seria diferente. Porém, a realidade é que Deus criou uma comunidade cristã em que todos têm algum dom, ninguém é superior por ter um dom específico e ninguém possui todos os dons. Isso estrutura a noção de comunidade cristã e é o modelo pelo qual devemos medir e avaliar as comunidades cristãs existentes. Tal realismo teológico serve para moderarmos um pouco a crítica com relação ao fato de a RENAS não abarcar toda a igreja. Há vocações diversificadas que devem ser apreciadas e valorizadas pelos outros, mas não necessariamente imitadas por todos, pois nem todos recebem o mesmo chamado de Deus. O realismo teológico deve sempre adoçar a nossa crítica ao contexto eclesiástico maior.

O “realismo sociológico” é a ideia de que nem todo mundo é capacitado religiosamente da mesma forma. Nas palavras do sociólogo Max Weber, existem os “virtuoses” religiosos, ou seja, pessoas excepcionalmente capacitadas. (Note que a palavra é “virtuoses” e não “virtuosos”, que são pessoas cheias de virtudes, algo que todos os cristãos devem se tornar ao longo dos anos.) Os virtuoses são especialmente capacitados para certas experiências e certas habilidades religiosas (captar elementos místicos, por exemplo). E isso não tem a ver com a questão da salvação. Existem os virtuoses religiosos e a “massa” religiosa -- pessoas que não têm uma capacitação excepcional nesse campo. Por mais que a proposta evangélica seja transformar todos os membros da igreja em virtuoses (todo mundo deve ser “muito crente”, ter experiências espirituais fortes e se envolver em tudo), o fato é que isso nunca acontece. E sempre que a igreja cresce mais numericamente, isso acontece menos. É o que constatamos hoje no Brasil. A igreja evangélica virou fenômeno de massas e a distinção entre a massa evangélica e os virtuoses evangélicos ficou mais evidente. E é sociologicamente irrealista esperar que seja diferente. Podemos esperar que seja “melhor” do que hoje, mas nunca haverá 100% no patamar mais alto. Sempre haverá uma parcela considerável de pessoas que estão na comunidade cristã, mas que “vão levando”. A história mostra que isso sempre acontece.

Nesse sentido também é preciso adoçar nossa crítica. Como o processo de crescimento numérico gerou perdas em outros sentidos, houve uma perda considerável do valor da identidade evangélica na sociedade brasileira. Na medida em que a igreja cresce numericamente, podemos nos pautar cada vez menos pela média da igreja. Temos de ser cada vez mais contraculturais na própria igreja. Digo isso não para que nos desanimemos, mas para que saibamos não mergulhar no desânimo. De vez em quando, inevitavelmente, vem uma onda de depressão por causa da realidade evangélica mais ampla. Porém não devemos ceder a ela. O realismo teológico e o realismo sociológico nos ajudam a não “chutar o balde”.

Na próxima edição, abordaremos o terceiro elemento, a “humildade amorosa”.

Nota
* Palestra apresentada no 5º Encontro Nacional RENAS, em Recife, em agosto de 2010.


Paul Freston, inglês naturalizado brasileiro, é professor colaborador do programa de pós-graduação em sociologia na Universidade Federal de São Carlos e professor catedrático de religião e política em contexto global na Balsillie School of International Affairs e na Wilfrid Laurier University, em Waterloo, Ontário, Canadá.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/326/acao-social-crista-realismo-e-espiritualidade

Como fazer discípulos de Cristo?

René Padilla


Se o propósito central da missão cristã é fazer discípulos, segundo a Grande Comissão que Jesus Cristo deu a seus discípulos (Mt 28.16-20), cabe a pergunta: Como fazer discípulos de Cristo? Para começar, precisamos levar em conta que um discípulo é primordialmente um aprendiz, alguém que está em processo de formação, cuja finalidade é que o aprendiz chegue a ser como seu mestre. Sob esta perspectiva, o mandamento de “fazer discípulos” é um mandamento para formar pessoas que cheguem a ser como Jesus Cristo.

Por certo, esta afirmação não coincide com um ensino que esteve presente em círculos evangélicos há alguns anos, segundo o qual a tarefa de discipular é formar discípulos à imagem e semelhança do discipulador. Não creio que esta tenha sido a intenção do mandamento. O Mestre por excelência a quem todos os cristãos somos chamados a seguir é Jesus Cristo. O apóstolo Paulo reconhece isto quando, escrevendo aos crentes na Galácia, lhes diz: “Meus filhinhos, por quem de novo sinto as dores de parto, até que Cristo seja formado em vós” (Gl 4.19). Isto não nega, no entanto, que só quem leva a sério seu próprio discipulado cristão está em condições de formar discípulos de Cristo. É por isso que o mesmo apóstolo exorta aos crentes em Corinto: “Sede meus imitadores, como também eu, de Cristo” (1Co 11.1). Tanto na tarefa de fazer discípulos como na de criar filhos, a pedagogia mais efetiva é a que depende muito mais do exemplo do que das palavras.

Voltemos à nossa pergunta inicial: Como fazer discípulos de Cristo? Já observamos na edição anterior que em nosso texto o verbo “matheteúsate” (“fazei discípulos”, no modo imperativo) é acompanhado por três formas verbais (gerúndios, no grego), duas das quais respondem diretamente a esta pergunta: “batizando-os” e “ensinando-os”.

O batismo é o rito de iniciação no discipulado. Este não é o momento para nos aprofundar na tradicional controvérsia entre quem pratica o batismo de crianças como sinal do pacto e quem pratica apenas o batismo de pessoas que creem, por entendê-lo como um ato consciente de identificação com Cristo. Para nosso propósito, basta destacar que na Grande Comissão se considera que o discipulado inicia com o batismo e que este é feito “em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo” (v. 19).

Com o batismo começa todo esse processo ao qual nos referimos anteriormente: o processo de formação do aprendiz para que chegue a ser como Jesus Cristo. Se não se leva isto em conta, corre-se o risco de fazer do batismo a única coisa que importa. Não foi isto que aconteceu com a conquista ibérica de nosso continente? Os conquistadores chegaram com um profundo sentido de missão, com a convicção de terem sido enviados por Deus. A cruz chegou acompanhada pela espada, os soldados chegaram seguidos pelos frades missionários. E, para “converter” os aborígenes ao cristianismo, se esforçaram para batizar milhares e milhares deles. Batizaram, mas não fizeram discípulos. E assim nasceram os nossos países: com massas batizadas, mas não evangelizadas. A pergunta é se hoje nós, os evangélicos, não corremos o risco de fazer o mesmo, impulsionados pelo desejo de aumentar o número de membros de nossas igrejas, mas sem a devida ênfase na missão de fazer discípulos.

E permanece a pergunta: Como fazer discípulos de Cristo? A forma verbal “batizando-os” é apenas parte da resposta e é inseparável da que se segue: “ensinando-os a guardar todas as coisas que vos tenho ordenado”.

Traduzido por Wagner Guimarães


C. René Padilla é fundador e presidente da Rede Miqueias, e membro-fundador da Fraternidade Teológica Latino-Americana e da Fundação Kairós. É autor de O Que É Missão Integral?.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/326/como-fazer-discipulos-de-cristo

Participando do mundo de Deus por meio da oração

Ricardo Barbosa de Sousa

A oração é o retrato da alma. É nossa identidade espiritual, a impressão digital do cristão. A maneira como oramos e o conteúdo de nossas orações revelam o que pensamos sobre Deus e o que pensamos sobre nós. A melhor forma de conhecer a teologia e o caráter de uma pessoa ou de uma igreja é observar sua oração.

É por isso que gosto de meditar nas orações na Bíblia. Gosto também de observar a forma como oramos. As orações do apóstolo Paulo em sua Carta aos Efésios nos ajudam a perceber sua teologia e seu caráter. Meditando nelas, percebemos que existem duas formas de orar: a primeira é quando apresentamos nosso mundo a Deus. A segunda é quando participamos do mundo dele.

Na primeira forma de oração, que é mais comum entre nós, oramos por nossa família, trabalho, saúde, projetos e outras necessidades pessoais. Deus quase sempre é invocado para atender a essas necessidades e emergências. Elas constituem o centro das orações. São orações que dizem respeito mais a nós do que a Deus.
Outra forma de orar é quando participamos do mundo de Deus. Oramos a partir daquilo que ele tem feito, das grandes realizações de sua graça em nosso favor. É o mundo de Deus, não o meu, que constitui o centro da oração.
É assim que Paulo ora. Ele começa agradecendo as bênçãos com que Deus nos tem abençoado nas regiões celestiais em Cristo. Ele é grato pelo fato de que Deus nos escolheu em Cristo, antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis. Louva a Deus por nos ter adotado como filhos e filhas, por sua eterna bondade. Agradece pela redenção e libertação do pecado e reconhece a riqueza da graça de Jesus Cristo. É grato a Deus pela revelação de sua vontade e pela dádiva do seu Espírito, que sustenta nossa salvação.
Ele segue orando e suplicando para que o Deus de nosso Senhor Jesus Cristo conceda à igreja espírito de sabedoria e revelação para o pleno conhecimento de Jesus Cristo. Para que Deus abra os olhos do seu povo para que compreendam a esperança da vida em Cristo, o poder da ressurreição pelo qual agora vivemos e a exaltação e glória de Cristo. Mais do que ser liberto da prisão, seu grande desejo é ver seus irmãos e irmãs tendo um conhecimento verdadeiro de Cristo e crescer em direção à sua real humanidade.
Ele coloca-se de joelhos diante do Pai e suplica para que Cristo habite nos corações do povo de Deus, transformando seu interior, para que possam, juntos, compreender a riqueza do amor de Cristo que transcende toda a compreensão humana e ser tomados de toda a plenitude de Deus. São esses os motivos de gratidão e as súplicas de Paulo.
É uma oração na qual podemos perceber a teologia e também o caráter do apóstolo. Antes de apresentar seu mundo a Deus, ele busca participar do mundo de Deus. Sua preocupação não se limita às necessidades pessoais. Não são suas prisões ou reputação que têm prioridade em suas súplicas. Sua atenção não está em sua saúde ou bem-estar. O que ele revela em sua oração é a paixão pela obra de Cristo, o desejo de ver o povo de Deus crescendo em direção a Cristo.
Podemos e devemos apresentar nosso mundo a Deus por meio da oração. Interceder pela família, trabalho, saúde e outras necessidades pessoais e comunitárias é parte de nossa resposta ao chamado de Cristo. No entanto, se permanecemos apenas conosco, atrofiamos a alma. Concebemos a oração a partir do nosso mundo e não do mundo de Deus. Das nossas necessidades e não das gloriosas riquezas de Cristo. Nossa compreensão de Deus torna-se confusa e a experiência de oração, frustrante.
A oração sempre começa com Deus e não conosco. O que Deus fez por nós em Cristo precede o que ele faz por nós em nossas necessidades diárias. Participar do mundo de Deus nos ajuda a entender a forma como Deus participa do nosso mundo. Se permanecemos com aquilo que Deus fez e segue fazendo em Cristo, crescemos na medida da estatura de Cristo.


Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos, em Brasília. É autor de “Janelas para a Vida” e “O Caminho do Coração”.


Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/326/participando-do-mundo-de-deus-por-meio-da-oracao