Osmar Ludovico
A
igreja evangélica atual tem origem na Reforma, e ao longo do tempo
recebeu a contribuição de diversos movimentos, como anabatismo,
puritanismo, pietismo, avivamentos do século 18, sociedades
missionárias, fundamentalismo, pentecostalismo clássico e missão
integral. O conjunto destes movimentos iniciados com a Reforma é o que
conhecemos como protestantismo. Vivemos atualmente sob o impacto do
controverso movimento neopentecostal. Foram sopros do Espírito Santo ao
longo da história, intervenções de Deus para dentro da realidade humana,
com suas instituições, seu poder político e econômico. Nenhum destes
movimentos é perfeito -- cada um deles tem luzes e sombras. É um
equívoco abraçar algum deles incondicionalmente. A tendência que se
observa é abraçar um destes movimentos como a última e definitiva
revelação de Deus e excluir os demais, considerando-os inferiores e
muitas vezes até hereges.
Como cada um destes movimentos tem
aspectos positivos e negativos, torna-se fácil criticá-los e
combatê-los, principalmente porque, em geral, a partir da segunda e da
terceira gerações após a visitação de Deus, a tendência é o engessamento
e a institucionalização, com suas estruturas de poder.
Ser
evangélico hoje significa andar nos passos dos reformadores e destas
outras contribuições, seja buscando alguma integração, seja na ênfase de
uma só delas. No entanto, não se trata de eleger uma ou outra, mas de
discernir o sopro do Espírito, que, de tempos em tempos, renova algum
aspecto que foi negligenciado ou esquecido da teologia e da prática de
Jesus de Nazaré. Trata-se de julgar e reter o que há de bom em cada uma
delas e receber com alegria esta preciosa herança, aprendendo com a
história e com aqueles que trilharam o caminho da fé, da esperança e do
amor antes de nós.
A Reforma aconteceu no século 16. O que
podemos aprender dos primeiros 1500 anos da história da Igreja? Muitos
evangélicos esclarecidos dizem: nada. Antes da Reforma só existiam duas
igrejas cristãs: a romana e a ortodoxa. Lutero e Calvino eram
agostinianos e lemos abundantes citações dos Pais da Igreja nas
“Institutas” de Calvino. Precisamos confessar, como evangélicos, nosso
preconceito e orgulho. Até hoje, olhamos com suspeita para tudo o que
aconteceu no seio da Igreja de Cristo anterior à Reforma por considerar
esta contribuição como católico-romana e achar que do catolicismo não
pode vir nada valioso.
Durante os primeiros 1500 anos de história
da Igreja, o Espírito Santo soprou várias vezes. A espiritualidade
clássica engloba a contribuição dos santos e doutores da igreja nos
movimentos da patrística, da monástica e da mística medieval, isto é, o
vento do Espírito anterior à Reforma.
O que se observa hoje é que
alguns protestantes se debruçam sobre este período, a espiritualidade
clássica, com o desejo de aprender e integrar na experiência evangélica
aquilo que há de bom. Evangélicos como Hans Burki, James Houston, Eugene
Peterson, Alister McGrath, Richard Foster, Ricardo Barbosa estão
redescobrindo a riqueza da espiritualidade clássica, como contribuição
vital para a igreja de hoje. Católicos contemporâneos, como Henri
Nouwen, Anselm Grun, Thomas Merton e outros, também buscam resgatar esta
tradição. A Comunidade de Taizé, fundada pelo reformado Irmão Roger,
tem alcançado muitos jovens na Europa e outros países, com sua proposta
de reconciliação, integrando o que há de bom nas tradições ortodoxa,
católica e reformada.
É uma falácia achar que a Reforma do século
16, apesar de sua importância fundamental, é o único e definitivo mover
do Espírito Santo na história da Igreja e que nada de bom aconteceu nos
séculos precedentes. Felizmente, para nós, estes antigos movimentos
estão documentados e podemos aprender com eles.
Alguns esclarecimentos que se fazem importantes acerca da espiritualidade clássica:
1.
Não é um produto. Não é mais uma mercadoria na prateleira religiosa
para um mercado ávido por consumir novidades. Trata-se de um olhar mais
profundo para os conteúdos e a prática da fé cristã, ancorado na
experiência com a Palavra e com o Espírito Santo, para vivermos a vida
de Cristo em nós.
2. Não é uma prática mística, alienante,
baseada em técnicas religiosas que produzem sensações agradáveis e
felicidade instantânea. Suas ênfases no silêncio e na solitude, na
meditação e na contemplação não são fins em si mesmos, mas meios para
uma vida de santidade e serviço ao próximo. Com a “Lectio Divina”, nós
evangélicos podemos resgatar uma leitura bíblica com o coração, com os
afetos.
3. Embora a monástica seja malvista pelos evangélicos, é
inegável seu impacto no Ocidente. No terceiro século, após a conversão
de Constantino e de o cristianismo se tornar a religião oficial do
império, homens e mulheres se retiraram em regiões ermas e remotas para
orar e ler a Bíblia. Surgiram os mosteiros e as regras. Ao redor do
mosteiro floresceu a civilização ocidental: a biblioteca gerou a
academia, o espaço do sagrado atraiu artistas, o “ora et labora”
desenvolveu tecnologias de cultivo, preparo e conservação de alimentos.
4.
O resgate da espiritualidade clássica não busca resultados, ou
conquistar o mundo; muito menos causar um impacto na igreja. Em vez
disso, se remete ao simples, ao pequeno, ao fraco. Não é para ser
“marqueteado”, sistematizado, explicado, reproduzido. Não busca uma
recompensa imediata. Não é para ganhar nada; é um caminho para aqueles
que amam o Pai, o Filho e o Espírito Santo, para aqueles que abriram mão
do poder e querem simplesmente crescer na comunhão com Deus, ouvir sua
voz e responder com dedicação e consagração.
A “multiforme”
sabedoria de Deus não é uma experiência de conhecimento que pertence a
um indivíduo, a um grupo ou a um movimento. Ela engloba o patrimônio de
revelação de Deus por meio da história da Igreja. Ou seja, as muitas
vezes que o Espírito Santo revitalizou, renovou, corrigiu, avivou e
despertou o povo de Deus de seus desvios e acomodações ao longo dos
séculos e através das nações, nas três confissões cristãs: ortodoxa,
romana e reformada.
Para isto, há que se vencer o preconceito
evangélico, que considera que tudo o que é católico é herético e, ao
fazer isto, se autoproclama dono da verdade. Assim rejeita o Pastor de
Hermas, Clemente, Justino, Inácio de Antioquia, Orígenes, Policarpo,
Pacômio, Antão, Bento, Atanásio, Crisóstomo, Gregório Nazianzeno,
Basílio, Agostinho, Bento, Bernardo de Claraval, Francisco de Assis,
Tomás de Aquino, Catarina de Siena, Inácio de Loyola, Savonarola, João
da Cruz, Tereza D’Ávila, Bartolomeu de las Casas, Tereza de Calcutá e
muitos outros. Estou certo de que a leitura dos pais orientais, dos
santos místicos e dos doutores do passado e a apreciação do exemplo de
suas vidas podem contribuir decisivamente para a igreja do século 21.
E,
claro, integrando com a contribuição de John Wycliffe, Jan Huss,
Lutero, Calvino, Zwínglio, George Fox, John Bunyan, John Knox, Conde Von
Zinzendorf, John Wesley, Jacob Spener, George Whitefield, Charles
Finney, Jonathan Edwards, D. L. Moddy, William Carey, Hudson Taylor,
David Livingstone, William Booth, Karl Barth, Paul Tillich, Dietrich
Bonhoeffer, Martin Luther King, John Stott, René Padilla, Samuel Escobar
e tantos outros.
Sim, sou um reformado evangélico: “Sola
Scriptura”, “Sola Gratia”, “Sola Fide”, “Solus Christus”, “Soli Deo
Gloria”. E aberto para aprender e integrar a espiritualidade clássica em
minha experiência cristã. Aprecio e sou edificado com o que aconteceu
em Niceia (325), Monte Cassino (529), Assis (1223), Wittenberg (1517),
Westminster (1647), Azuza Street (1905), Medellin (1968), Lausanne
(1974) e com outros momentos em que o Espírito soprou na história da
Igreja. É importante e promissor este diálogo entre a Reforma
Protestante e a espiritualidade clássica, integrando o que há de bom
nestes movimentos.
E prossigo no meu caminho: na intimidade com o
Pai, sob a direção da Palavra e a inspiração do Espírito Santo;
buscando a santidade de Cristo e, com a Igreja, anunciando o evangelho e
servindo aos pobres. Quando falho, me arrependo, experimento a graça
perdoadora e recomeço.
• Osmar Ludovico da Silva
foi pastor durante trinta anos e hoje dedica-se a dirigir grupos de
formação espiritual. Mora com a esposa, Isabelle, em Lauro de Freitas,
BA, e participa da Igreja Batista de Vilas do Atlântico. É autor de
“Meditatio” e se identifica com a missão integral e a espiritualidade
clássica.
Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/320/a-reforma-protestante-e-a-espiritualidade-classica/Miss%E3o+Integral