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quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Ação social cristã -- a humildade amorosa (Parte II)

Paul Freston

Na edição anterior abordei a necessidade de “realismo teológico” e de “realismo sociológico” no exercício da ação social evangélica. Agora veremos o terceiro elemento: a “humildade amorosa”.

Há anos leio os comentários dos autores patrísticos (os Pais da Igreja dos primeiros séculos da era cristã) sobre os evangelhos. Leio também os romances de um dos maiores escritores russos de todos os tempos, cuja visão de mundo é essencialmente cristã: Fiodor Dostoievski. Usarei frases de autores patrísticos e trechos de Dostoievski para uma melhor compreensão do texto dos evangelhos conhecido como “O Rico e Lázaro” (Lc 16.19-26).

Gregório, o Grande, observa que “o Senhor menciona o nome do pobre, mas não o do rico; pois Deus conhece e aprova o humilde, mas não o orgulhoso”. Gregório associa “pobre” a “humilde” e “rico” a “orgulhoso”. Ambrósio, bispo de Milão, fala da “insolência e orgulho dos ricos, tão indiferentes à condição da humanidade, como se eles pairassem acima da natureza”. Ele ironiza o comportamento dos ricos que agem como se não fizessem parte da raça humana. Agostinho acrescenta que “a cobiça dos ricos é insaciável”. Há uma semelhança com a Teologia da Libertação.

Crisóstomo, arcebispo de Constantinopla, exilado por não desistir de criticar a corte do imperador bizantino, comenta que “o rico morreu, como diz o texto, mas sua alma já havia morrido. Assim como deitar fora do portão do rico aumentou a aflição do pobre, o desespero do rico no inferno é maior porque ele vê a felicidade de Lázaro”. Há um paralelismo: em vida, Lázaro sofria ainda mais, pois via todos os dias o contraste entre sua situação e a do rico. Agora, porém, está tudo invertido. Os tormentos do rico são maiores porque ele consegue ver o bem-estar de Lázaro. Ou seja, é um inferno apropriado, feito sob medida. “Estando o rico totalmente atormentado, somente os seus olhos estão livres”, diz Crisóstomo. E eles só conseguem ver a felicidade de Lázaro, o que apenas aumenta o tormento. “Veja agora o rico necessitando do pobre!” Evidentemente, estamos acostumados com outra situação. “E agora todos percebem quem era verdadeiramente rico e verdadeiramente pobre.” As máscaras foram tiradas e Crisóstomo faz até uma analogia: “Quando termina a peça, os atores retiram os trajes; da mesma forma, quando vem a morte, o espetáculo acaba e as máscaras da pobreza e da riqueza são tiradas, então os homens são julgados somente por suas ações”.

Gregório diz ainda: “O rico no inferno busca uma gota d’água, ele que em vida nem queria dar uma migalha de pão. Porém, ele recebe uma retribuição justa -- o fogo do desejo intenso”. Novamente a ideia de um inferno feito sob medida. Como frisa Crisóstomo, “ele não está no inferno porque era rico (afinal, Abraão era riquíssimo), mas porque não era misericordioso. E como sua língua havia falado muitas coisas orgulhosas, ele pede que Lázaro seja enviado para refrescar a ponta dela com o dedo molhado em água”. E a conclusão de Crisóstomo é que “onde está o pecado, aí está o castigo”.

Gregório de Nissa confirma essa perspectiva: “O juízo de Deus é adaptado às nossas disposições. Como o rico não teve piedade do pobre, ele não é ouvido quando precisa de misericórdia”. Porém, diz Gregório: “Quando você se lembra de ter feito uma boa ação, tenha cuidado, porque existe o perigo de que a recompensa presente seja tudo o que você vai receber de recompensa!”. E ainda: “O justo pode até receber coisas boas aqui, em troca da sua bondade (embora nem sempre aconteça). Porém, ele não as recebe como recompensa, pois busca algo melhor, que é a recompensa eterna”.

Finalmente, o texto afirma que entre o rico e Lázaro há um grande abismo, que simboliza a distância entre o justo e o pecador, entre suas disposições interiores. E tal abismo é descrito como “fixo”. É preciso entender a parábola como uma mensagem para a vida presente, não como uma descrição literal e detalhada da vida futura. Porém, como combinar isso com a crença num Deus que certamente é muito mais misericordioso do que nós? Se nós sabemos ser misericordiosos (às vezes e até certo ponto), quanto mais Deus! Além disso, ele é muito mais capaz de pesar os fatores psicológicos e sociológicos na biografia de cada pessoa. Ele conhece a fundo todos os fatores que influenciaram a vida de cada um e tiveram um peso em suas ações. Por isso, “o juiz de toda a terra fará justiça”.

Há dois textos de Dostoievski em “Os Irmãos Karamazov” que também exemplificam isso. O primeiro é o comentário sobre essa parábola, feito por um dos personagens centrais do livro, que é um monge e conselheiro espiritual. Diz ele: “Eu pergunto a mim mesmo o que é o inferno. E defino assim: o inferno é o sofrimento por não poder mais amar. Uma vez [fazendo referência ao rico da parábola] um ser teve a possibilidade de dizer “eu sou e eu amo”. Uma vez somente foi-lhe concedido um momento de amor ativo e vivo. Para isso lhe foi dada a vida terrestre [que bela descrição do sentido da vida!]. Porém, esse ser repeliu esse dom inestimável e ficou insensível. E esse ser, tendo deixado a terra, vê de longe o seio de Abraão. Ele contempla o paraíso de longe. Porém, o que o atormenta precisamente é que se apresenta sem ter amado. E diz: “Agora a minha sede ardente de amor espiritual me abrasa”. O que abrasa o rico é justamente o desejo de amar, mas a impossibilidade de fazê-lo porque passou o momento. Ele desdenhou a possibilidade de amar na terra, quando era a hora de amar. “A vida que se podia sacrificar pelo amor já decorreu.”

O segundo texto é a lenda da cebolinha, um relato russo contado por uma das personagens femininas de “Os Irmãos Karamazov”:

Era uma vez uma mulher muito má, que morreu sem deixar atrás de si uma única boa ação. Os demônios a pegaram e partiram em desabalada carreira para o lago de fogo. Porém, seu anjo da guarda pensava: “Se ao menos eu pudesse me lembrar de uma boa ação que ela tivesse feito, iria contar a Deus!”. Recordou-se e disse a Deus: “Ela arrancou uma cebola na horta e a deu a uma pedinte”. Deus lhe respondeu: “Tente dar-lhe essa cebola no lago para que ela a agarre; se você a retirar, concordo que entre no paraíso; mas, se a cebola romper-se, então que fique onde está”. O anjo correu em direção à mulher e lhe apresentou a cebola: “Pegue-a”, disse ele, “e segure bem!”. Pôs-se a puxar com cuidado e a mulher emergia toda. Os outros culpados que estavam no lago, vendo que ela estava sendo retirada, agarraram-se a ela para poder sair também. Porém, a mulher era muito má e debateu-se para dar-lhes pontapés: “Sou eu que estou sendo retirada, não vocês!”. No mesmo instante em que lhes lançava essa observação, a cebola rompeu-se. A mulher caiu no lago e ainda está queimando. O anjo foi-se chorando.

Certo livro acadêmico, ao comentar a obra de Dostoievski, diz que, “em última análise, o que selou o destino da mulher não foi a longa série de transgressões pessoais, mas seu egoísmo e o fato de ter se colocado contra os outros pecadores, ou seja, seu desejo de alcançar uma salvação individual, que abrangesse apenas ela e não os outros”. O autor ainda diz que Dostoievski iguala a mulher má da lenda e o monge citado, que era um grande santo. Pois o monge, já morto, aparece em sonho a um dos irmãos Karamazov e lhe diz que está no paraíso somente porque um dia ele também “deu uma cebolinha”.

Walter Hilton, um grande místico cristão inglês do século 14, fala muito sobre humildade e amor. Sobre humildade, ele diz: “Quem possui essa única virtude, possui todas as outras”. A humildade é a chave; nada vale possuir todas as outras virtudes sem ela. Aliás, a ênfase nas virtudes soa estranha aos nossos ouvidos. Os pregadores dificilmente abordam a questão, e é por isso que a igreja evangélica nos causa tanta vergonha, pois não ensinamos o cultivo das virtudes. Walter Hilton acrescenta: “Se quiser construir um edifício alto de virtudes, coloque primeiro um alicerce profundo de humildade. Ela preserva e guarda todas as outras virtudes”. Ou seja, se não houver humildade, você pode até construir um edifício alto de virtudes; porém, no primeiro tremor de terra, seu edifício ruirá. Já vimos muitos exemplos disso e muitas vezes percebemos a mesma tendência em nós. “Sem a humildade, quem tenta servir a Deus tropeçará como um cego”. Há aqui uma mensagem para o cristão envolvido em ação social: “Meditar constantemente na humildade de Cristo ajuda a destruir os pecados graves e implantar as virtudes”. Isto é, ler constantemente sobre a humanidade humilde de Cristo nos evangelhos. “Vista a semelhança de Cristo, ou seja, a humildade e o amor. Sem isso, nenhuma obra o fará semelhante ao Senhor.” “Aprenda comigo”, diz Cristo, “não a andar descalço, ou a jejuar quarenta dias no deserto, ou a escolher discípulos, mas aprenda comigo a humildade. Este é o meu mandamento, que se amem uns aos outros como eu os amei. Nisso os homens saberão que vocês são meus discípulos, não porque operam milagres, expulsam demônios ou pregam e ensinam.”

Concluindo, mais uma frase do monge de Dostoievski: “Pergunta-se por vezes, sobretudo em presença do pecado: ‘É preciso recorrer à força ou ao amor humilde?’. Não empregueis jamais senão esse amor; podereis assim submeter o mundo inteiro. A humildade cheia de amor é uma força tremenda, sem nenhuma outra igual”. O alicerce profundo da humildade amorosa é uma força tremenda! Que a identidade evangélica seja cada vez mais marcada por essa característica.

Nota

* 2ª parte da palestra apresentada no 5º Congresso Nacional RENAS, em Recife, em agosto de 2010.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/327/acao-social-crista-a-humildade-amorosa

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